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09 abril 2013

Crónica de um passeio pela linha


Crónica de um passeio pela linha

(a propósito do III Passeio Pedonal – Almendra/Barca d’Alva)

Por terras de Foz Côa, já há muitos anos que a água não caía tão intensa. Dias e dias a fio, as nuvens pesadas e negras descarregavam quase ininterruptamente torrentes de chuva. Mesmo assim, uma espreitadela aos sites meteorológicos confirmava que naquele dia 30 de Março, o tempo amainaria, e o sol, embora tímido, faria a sua aparição.
- Sábado não chove! - profetizava o Zé Constanço, enquanto a chuva caía copiosamente sobre a procissão do senhor dos Passos.
- Chova ou não chova, já comprei a água e a fruta, para dar ao pessoal na ponte de são Cibrão - respondi-lhe com convicção, não fosse o Zé desanimar. O que é preciso é ter cuidado com a travessia da ponte; já lhe roubaram várias pranchas do corredor e é preciso fazer um cordão de segurança.
- Conta comigo, pá! Andei nos comandos a fazer o quê? 
...
Sete e trinta da manhã. Os autocarros da câmara ocupavam já os lugares estratégicos para arrancar. Pelo trajecto até à estação haveriam ainda de recolher caminheiros em Castelo Melhor e no cruzamento de Almendra. E enquanto o Luís confirmava o pessoal inscrito e o Lebreiro desfazia-se em cumprimentos, no Havaneza tomavam-se os primeiros cafés da manhã e trocavam-se conversas e abraços.
- Eu vou com o Adriano à frente e esperamos por vós na ponte - dizia o Zé, de NIKON a tiracolo. O Adriano leva uma merenda que já me está a fazer água na boca!
- Não me digas que é lampreia, labuzeirão? E o garrafão?
- Ó tosco, então isso é que faltava?!
...

Dez e trinta. Ponte de São Cibrão.
- Caminhem pela direita e aproveitem o corredor e o corrimão - recomendei preocupado. Mais à frente faltam já algumas pranchas, mas o Diamantino, o Cazé e Zé Constanço estão lá para ajudar! Na carrinha há maçãs e laranjas para todos. E água também. Temos muito tempo, só faltam quatro quilómetros para Barca d’Alva! 
...
A atenção exigida durante o percurso para evitar os pequenos obstáculos e acertar os pés nas travessas da via-férrea não permitia gozar em pleno a paisagem espectacular do rio Douro, mas agora ali, mesmo junto à ponte, enquanto se matava a sede e se saboreavam umas excelentes laranjas, os olhos podiam correr lentamente pela paisagem.
 O Douro, bastante encorpado e lamacento das águas das chuvas, espreguiçava-se entre a quinta da Canameira e a quinta do Sotero. Sobreposto ao rio, o monte de Caliábria dominava a paisagem circundante, como que a reviver os seus tempos imemoriais de antiga cidade muralhada e sede de arcebispado, abandonada há séculos e perdida nas brumas do tempo. As vinhas e os olivais corriam planuras e encostas e só se detinham bem próximo das margens do rio. A completar o quadro, as urzes, as estevas e os rosmaninhos enchiam os ares do perfume mais puro e mais precioso que existe. Hei-de trazer aqui a minha família, dizia-me um simpático caminheiro. É sem dúvida uma paisagem espectacular! Sou da Amora e ao passar aqui de barco, prometi a mim mesmo que um dia faria a linha a pé! Ainda bem que vocês fazem estas actividades, dizia-me o amigo Fonseca!

A caminhada reinicia-se.
Os caminheiros avançavam, agora num extenso troço da linha sem carris, cujo desaparecimento trouxe com certeza uns bons cobres à bichagem que os fanou! De repente encontro-me completamente só! Nem carrinhas, nem gente! Que terá acontecido? Um cheirinho delicioso a guisado pairava no ar puro da paisagem! De maçarico na mão, o Adriano esquentava o tacho do galo preparado na véspera! Manjar delicioso! Galo pica-no-chão, pão caseiro, queijo de ovelha, azeitonas de arregalar os olhos e aquela pinga tinta do Zé, inteiramente de sua lavra, era de clamar aos deuses, os tais que nos haviam poupado de uma molhaça do catano!

Doze e trinta.
Barca d’Alva começava a receber os primeiros caminhantes. A linha que por viadutos atravessa o povo e vai quedar-se na estação, conduzia os passeantes até ao abandonado cais de embarque. Ali mesmo, abrigada sob o velho barracão de mercadorias, o Cazé estacionara a carrinha das merendas, e a caixa de carga virara, como que por magia, numa copiosa mesa de iguarias de toda a espécie. Livre, comunitária, oferecida! Nada lhe faltava, nem o espectacular pastelão de espargos que o Reinaldo da concertina foi colhendo ao longo do percurso e que pressurosamente fritara num restaurante local. Nem os deuses do Olimpo comeriam tão bem!

Perto de cem caminheiros haviam participado em mais uma acção em prol da reabertura da linha internacional do Douro. A tal que, já nos tempos do Eça e do Junqueiro, havia sido a mais importante via de caminho-de-ferro internacional.
A tal que possui o percurso mais directo e mais lógico entre o Porto e o resto da Europa, mas que só as mentes entupidas não querem ver! A tal que ainda hoje representa o expoente da arquitectura e da engenharia portuguesa dos fins do século XIX! A tal que, contra vales e abismos, barreiras e penedias, vales e montanhas, havia de se erguer até San Esteban, à força do trabalho português que em perigos esforçados levaria ao desaparecimento de duas centenas de corajosos operários que jazem nos campos de Fregeneda.

Comparada com eles, a nossa luta não passa de uma vulgar acção, porém sentida! E se apenas isto fizéssemos, isto bastaria para reconhecer o valor e o trabalho da grandiosa obra que muitos querem esquecer!



por José Ribeiro
Foz Côa Friends, Associação







3 comentários:

Bem-Hajam a todos por actividades como esta. Foi na primeira edição desta actividade que se cimentou a ideia de realizar o projecto "Terra dos Sonhos" e isso de certa forma alterou a minha vida! Por isso o meu agradecimento a todos.

https://www.facebook.com/TerradosSonhosDocumentario?fref=ts

Os melhores cumprimentos Nuno Leocádio

Foi um dia muito bem passado, com muitas historias para recordar e contar aos netos :)um abraço caloroso de Lisboa

Bem-hajam a todos amigos de Foz Coa!!

aquele nortenho abraço
Jose Dias Pereira

A todos os que participaram na caminhada e nos apoiam por tudo o mundo, é um privilégio ser mais "um" entre tantos.
A vida é feita destas pequenas coisas!
Juntos seremos muitos...

Bem-hajam a todos!

Um grande abraço deste Fozcôense
Paulo Fachada

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